Narrativas como a lenda hebraica do Jardim do Éden, o mito grego de Prometeu e a lenda babilônica de Adapa, entre outras, buscam contar a história de um momento no passado em que houve um “grande erro” ou “pecado” praticado por nossos antepassados, e que provocou a “queda” do ser humano de um estado “paradisíaco”. Tratam-se de fábulas nada triviais, pois falam sobre algum evento misterioso que teria ocorrido muito antes de a humanidade descobrir a escrita e assim poder registrar os acontecimentos. Nesse caso, o estudo dos paralelos entre esses símbolos poderia nos dar alguma pista sobre esse suposto evento misterioso, que é o que propomos com esta série “Mitos da Queda”.
Uma dessas lendas é a do grego Orfeu, que sugere uma relação entre a música e aquele evento misterioso. Entre os antigos gregos, essa história não era tratada como mera fábula. Antes, considerava-se que o mito ocultava uma grande verdade, um segredo acessível apenas àqueles que haviam sido iniciados nos mistérios de Eleusis. O culto depositário desses segredos, de grande influência em todo o mundo helenístico, ficou conhecido como orfismo, por sua associação à lenda de Orfeu.
Segundo a lenda, embora Orfeu fosse um ser humano, tinha uma habilidade divina, que surpreendeu mesmo a Apolo, o grande músico entre os deuses. É que, tocando sua lira, Orfeu criava melodias capazes de encantar e hipnotizar todas as criaturas, mortais e imortais.
Mesmo as feras selvagens e os deuses infernais achavam-se indefesos diante do talento Orfeu. A depender do que tocava, ele parecia capaz de manipular as emoções de seus ouvintes como quisesse.
No mito, Orfeu é um dos Argonautas, isto é, um daqueles que navegou em Argos junto com Jasão, na busca pelo Tosão de Ouro. Filho da musa Calíope e de Éagro, rei da Trácia (embora a paternidade seja também atribuída ao próprio deus Apolo), Orfeu um dia conheceu a bela Eurídice e por ela se apaixonou. Logo após celebrar o casamento, infelizmente, Eurídice morreu do veneno de uma serpente.
Inconformado, Orfeu decidiu ir até o reino dos mortos para trazer Eurídice de volta ao mundo dos vivos. E para essa tarefa aparente impossível, ele contava com o poder de sua música.
Para os gregos, o mundo dos mortos ficava em uma região subterrânea, daí a palavra “infernus”, que pode significar “o que está abaixo”. Chegando lá por uma caverna, Orfeu encontrou Caronte, o barqueiro que transportava as almas pelo rio Estige até o reino dos mortos. Tocando sua harpa sua história e missão, Orfeu comoveu Caronte, que aceitou ajudá-lo, transportando-o em seu barco. Ao chegar nos portões do reino dos mortos, Orfeu livrou-se da fúria do ameaçador Cérbero, o cão de três cabeças que fazia guarda nas portas do “inferno”, ao tocar uma música que fez a criatura adormecer profundamente. Assim Orfeu atravessou os portões sem oposição.
Enfim, ao chegar ao reino dos mortos, Orfeu voltou a tocar sua harpa, e com sua música trouxe um momento de paz a todas as almas condenadas. Mais impressionante ainda, com sua música ele fez o próprio Hades, deus do mundo dos mortos, comover-se e chorar de um jeito incontrolável.
Para livrar-se do poder da música de Orfeu, Hades concedeu-lhe que levasse Euridice de volta ao reino dos vivos. O deus, contudo, estabeleceu uma só condição, com a qual planejava vingar-se, já que conhecia a insegurança da natureza humana. A condição era que Orfeu deveria seguir na frente de Eurídice e retornar a pé pelo mais longo e tortuoso caminho que leva de um reino a outro, sem jamais olhar para trás para confirmar se Eurídice acompanhava-no ou não.
Durante todo o trajeto de volta, Orfeu tentou obedecer a provação imposta. Assim, ele seguiu o longo e tortuoso caminho sem olhar para trás. O problema é que em nenhum momento de sua jornada de volta ele conseguia escutar os passos de Eurídice atrás de si, não ouvia sua resposta quando a chamava, nem qualquer comentário quando falava, e tampouco encontrava qualquer outro sinal de que ela o acompanhava, nenhuma respiração ofegante, tampouco sua sombra nas paredes das rochas. Aos poucos, Orfeu começou a convencer-se de que estava só.
Após um período de tempo que lhe parecia eterno, enfim Orfeu, exaltado e esgotado, viu a luz do sol adiante, e percebeu que faltavam poucos passos para sair do reino dos mortos. A essa altura, Orfeu já tinha quase certeza de que Eurídice não o havia seguido, e que Hades o enganara, impedindo sua amada de acompanhá-lo. Assim, em um momento de fraqueza e dúvida, antes de alcançar a saída, Orfeu olhou para trás. E o que ele viu assim que se virou foi Eurídice sendo arrastada (versões da lenda dizem que pelo deus Hermes) de volta para o reino dos mortos, pois Orfeu havia quebrado seu compromisso no último momento.
Ao retornar ao mundo dos vivos, Orfeu caiu em depressão profunda, e decidiu viver uma vida de celibato, renunciando a adoração a qualquer outro deus, salvo Apolo. Assim, seguiu em sua vida infeliz como um andarilho, lamentando a sua fraqueza no último minuto, graças a qual havia condenado Eurídice ao mundo dos mortos.
Um dia, enfurecidas ao vê-lo cultuando Apolo em um lugar consagrado a Dioniso, as seguidoras desse outro deus, chamadas de ménades, estraçalharam o corpo de Orfeu em pedaços. Apenas a sua cabeça e a sua lira foram poupados da fúria, e a lenda diz que ambas flutuaram no rio Hebro ainda entoando uma música melancólica. A imagem da cabeça de Orfeu cantando uma música triste enquanto seguia a corrente do rio tornou-se uma imagem célebre na iconografia de inspiração grega.
Mas o que realmente estava por trás da “lira” de Orfeu? Qual o segredo de suas “melodias”? Formular essas perguntas é iniciar uma busca a que Pitágoras dedicou toda sua vida. Os próprios mistérios que o orfismo reservava apenas aos iniciados parecem ter relação com a linguagem e as faculdades auditivas do ser humano. O deus Fanes, por exemplo, era descrito pelo orfismo como uma deidade que nascia de um ovo criado pelo Tempo, e ocupava posição central na tradição órfica, e a seu respeito Damáscio deixou a misteriosa informação de que teria sido o primeiro deus “expressável e aceitável para os ouvidos humanos” (πρώτης ητόν τι ἐχούσης καὶ σύμμετρον πρὸς ἀνθρώπων ἀκοάς).
A música parece ter algum tipo de poder que nos domina. Algumas músicas fazem com que a gente se mexa involuntariamente, batendo o pé no ritmo que ela dita. E a lenda de Orfeu sugere que a música possuiria mesmo algum tipo de “poder misterioro”. Mas talvez esse poder não esteja na música, e sim nas ondas sonoras que se expandem pelo ambiente.
Seja qual for a verdade por trás dessas informações fragmentadas, temos mais elementos de um antigo mistério a pesquisar. Pois há algo na música e no fenômeno ondulatório que nos afeta profundamente.
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