Deixa eu contar uma piada.
Quando a editora de conteúdo de Ophanim me perguntou se eu poderia escrever algum texto para o Cine Arcano sobre o filme Joker, Folie à Deux, fiquei relutante. Não gosto de trabalhar “sob encomenda” quando se trata de decifrar algum significado espiritual codificado (intencionalmente ou não) em um filme. As coisas precisam “se encaixar” sem forçar a barra, e muitos filmes simplesmente não possuem qualquer significado arcano.
Mas topei, pois todo mundo estava brigando sobre o filme. E eu andava mesmo curioso.
Depois de ver, escrevi o texto e mostrei para um amigo, que notou não ter título. Expliquei que estava em dúvida mas um título resumia bem a mensagem da minha análise “arcana” sobre o que tinha visto:
JOKER 2, UM FILME QUE FILME NÃO ESTÁ À ALTURA DO “ANÃO”
Pela expressão que ele fez ao ouvir este título, já vi que tinha algo errado.
– Isso não ficou legal, soa tão… preconceituoso!?!
Abaixei minha cabeça coçando a barba como sempre faço quando medito, e concordei:
– Sim, você tem razão. Vou mudar.
– É que parece tão baixo, bem menor que a estatura de seu texto.
Não vou contar se rimos dessa parte final, afinal meu caráter está em jogo. Mas se a piada é ruim ou de mal gosto, consegui meu objetivo, pois um filme tão ruim quanto Joker, Folie à Deux não merece mais do que uma piada sem graça. Mais ainda, merece um piada sem graça que chama a atenção para a única problemática importante e sutil proposta por um filme que, de resto, é uma tentativa incompetente de transmitir mensagens que, sim, são relevantes.
O objeto deste texto não é a qualidade cinematográfica da obra. Mas acho que preciso, pelo menos, usar esse trabalho por encomenda como catarse da raiva que senti por ter perdido duas horas da minha vida vendo esse filme.
PULE ESTA PARTE SE NÃO QUISER MINHA CRÍTICA AO FILME
Acredito que aqueles que gostaram do filme podem ser divididos em dois grupos. O primeiro grupo é formado pelos fãs da Lady Gaga, que achariam excelente qualquer projeto da cantora e atriz. Esses estão desculpados do erro, porque amor deixa as pessoas cegas, e que se danem os outros.
O segundo grupo é composto daqueles lindos alecrins dourados da divergência incompreensível, cuja existência é necessária para que a maioria acachapante que achou o filme horrivel, inclusive Joaquin Phoenix, não seja burra. Pois, como disse Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra.
As pessoas desse segundo grupo costumam dizer que aqueles que não gostaram do filme não entenderam a proposta do diretor, Todd Phillips. E que não compreenderam sua intenção de reverter expectativas hollywoodianas dos fãs “redillados“, esses projetavam (e isso é verdade) seus ressentimentos contra a sociedade na figura de um sujeito frustrado, um incel que mora com a mãe e é stalker da vizinha. Também dizem que os críticos à obra não entenderam a ideia do diretor de se afastar do universo Marvel e DC para dar ênfase na cisão entre o humano Arthur Fleck e a persona Joker, construída por uma cultura de entretenimento em massa que glorifica a violência.
Não. Nós entendemos. Entendemos tudo isso. Aliás não tinha como não entender. Pois Phillips não é muito sutil e chega a ser exagerado na tentativa de deixar claro, mesmo para o expectador mais obtuso, que mensagens pretende transmitir no filme.
O problema não são as propostas, as ideias que o diretor tenta transmitir. O problema é a execução convoluta e incompetente, que misturou uma proposta hiper-realista como a do primeiro filme (pelo menos para os padrões da Warner) com dois gêneros do cinema muito diferentes entre si: o filme musical e o filme de tribunal.
Fazer uma sequência bem-sucedida já é difícil, coisa de mestre no cinema. Mas fazer uma sequência misturando gêneros totalmente diferentes do primeiro filme é coisa de gênio da arte. E Todd Phillips filme está longe disso.
Mas há um lampejo, talvez inconsciente, de talento no diretor em uma passagem da história. Falo da tentativa de piada que Phillips fez com o personagem Gary Puddles, interpretado pelo ator britânico Leigh Gill, portador de nanismo. A intenção do diretor de fazer piada é tão evidente que um crítico brasileiro contou na rede social Threads que ficou chocado quando, na sessão especial para críticos e jornalistas, muitas pessoas na plateia riram quando Gary entrou em cena.
A risada do público em parte pode ser atribuída à lembrança da cena de homicídio no primeiro filme, em que Gary participa como testemunha incidental. Mas, nesse segundo filme, a intenção de provocar risos com o personagem está clara, pois o diretor faz questão de mostrar que Gary está sentado em cima de uma lista telefônica na sala de julgamento.
Acho que há um lampejo de talento em Todd Phillips nessa parte porque ele provoca o riso da plateia um pouco antes da cena determinante em que Joker começa a perder terreno para Arthur Fleck precisamente por esse ser incapaz de rir de Gary como os colegas. Dessa forma, o diretor apresenta a cada pessoa da plateia um espelho passageiro de seu próprio caráter, conforme sua reação segundos antes.
Por isso, acho que o Gary é o personagem com a participação mais interessante no filme. E, além de Gary, também o “Anão” me parece muito importante. Vou explicar.
O “ANÃO”
(Atenção: nos parágrafos a seguir não há spoiler do fim do filme, mas há spoiler de um evento decisivo no filme)
Eu sei, eu também fiz uma piada sobre o nanismo no início desse texto. Peço perdão pela tentativa de chamar a atenção para o único aspecto arcano que encontrei no filme que tem algum valor para mim. E esse aspecto está na figura de Gary Puddles, o “anão”. Ele é mesmo o personagem secundário mais importante na trama.
Repare que, no título, usei a palavra entre aspas e com inicial maíuscula, “Anão“. Não estamos falando aqui, portanto, de uma pessoa, nem de um personagem. Mas de uma ideia, um símbolo que, quando é limpado das manchas do preconceito, traz uma mensagem que todos precisamos aprender para sobreviver, pelo menos, nos próximos 20 anos, a confiar na atrologia.
No filme, Gary Puddles é um elemento decisivo. Quando Arthur Fleck está no ápice de sua encarnação do Joker no meio do tribunal, tão triunfante que conseguiu pintar-se como palhaço, são as palavras de Gary que quebram a magia de Lee Quinzel, a Arlequina. E Gary faz lembrado para Arthur de seu lado mais humano, mais decente, mais cuidadoso e respeitoso com o próximo. Pois na mente de Gary estava a lembrança de um Arthur gentil, que não fazia piada dele como os demais colegas.
O portador de nanismo nos parece um objeto de piada fácil não só pelos trocadilhos que imediatamente vêm na cabeça. Também são alvo fácil de escárnio pois sua estatura está associada àquilo que é “baixo”, “inferior”, “menor”, ou seja, a palavras relacionadas à falta de valor.
As minorias de todo o tipo, e não só os portadores de características genéticas menos prevalentes como o nanismo, costumam ser objeto de piada em qualquer sistema social atrasado. A piada, nesse caso, é um instrumento também de dominação, de coisificação do outro. Como o antissemitismo e o racismo mostram, esse uso instrumental do humor é mais forte em sociedades fechadas, em regimes totalitários.
Nas sociedades abertas e plurais, as minorias encontram espaço para expressão e também o direito de participar das decisões da comunidade. Com isso, toda a comunidade se beneficia não só pelo aumento de sua riqueza cultural, mas também com novas perspectivas e propostas que podem advir de uma diferente cultura, ainda que minoritária.
Mas isso não é só verdade para as sociedades. Também a gente, em nossa vida mental, temos aspectos que são oprimidos e ridicularizados. O filme de Todd Philipps, em seu melhor momento, propõe que, para muitos de nós, esse aspecto reprimido é aquele mais gentil e humano. Ou seja, aquele traço de caráter que muitos receiam demonstrar em público pois revela nosso lado mais “frágil”, mais “sensível”, mais “facilmente machucável“. Você, com certeza, deve conhecer homens que consideram a sensibilidade e revelação de qualquer fragilidade como coisa de “maricas”, como algo “menor”, abaixo da estatura do “macho alfa”.
Arthur talvez não risse de Gary no trabalho porque a situação colega diante dos demais refletia também a sua própria fragilidade. Joker é a tentativa da psique de Arthur de negar e reagir a essa posição de oprimido. Mas é uma tentativa falha e fadada ao fracasso. Pois, com Joker, Arthur tenta reprimir sua ternura, sua sensibilidade e, principalmente, o amor e respeito ao próximo.
Se Arthur ouvisse o “Anão” em si (isto é, o lado que tenta oprimir em sua psique ao manifestar Joker), talvez não tivesse matado ninguém e não teria sido preso. Nesse caso, com o auxílio do “Anão”, Arthur e Joker poderiam ter se fundido em uma só personalidade de um ser humano seguro de si, autoconfiante e capaz de se impor aos outros sem ter que matá-los. Alguém ao mesmo tempo corajoso, até ousado, mas também capaz de perdoar e amar o próximo.
No tarot, a figura do Joker está presente no arcano zero ou sem número, O Louco. Esse arcano representa, entre outras coisas, a energia primeva, livre e ilimitada, com que Deus criou o universo, a origem de todas as outras energias, inclusive aquela que precisamos ter todos os dias para nos impor ao mundo e enfrentar os desafios cotidianos.
O arcano O Louco costuma ser representado com a figura de um pequeno animal, muitas vezes cão, que parece estar importunando o personagem central, “como se quisesse comunicar-lhe alguma coisa”, diz Sallie Nichols em seu “Jung e o Tarot”. Como se tentasse evitar que o personagem principal seguisse por uma direção, muitas vezes um precipício. Tal personagem coadjuvante nas representações pictóricas do arcano representa a intuição, a sabedoria instintiva (daí o animal) que, quando ouvida, permite que nos guiemos pelos labirintos da vida sem cair em armadilhas.
Tenho a convicção íntima de que todos nós estamos para enfrentar tempos extraordinários nos próximos anos, talvez décadas. Não somente os astros indicam isso, como sugerem os especialistas. Também eventos políticos e climáticos prenunciam momentos difíceis por vir.
Em épocas como a atual, precisamos não só dar espaço às minorias em nossa sociedade, cultivando o amor e o respeito pelo próximo e sua condição. Precisamos também vasculhar os guetos e cantos escuros de nossa psique para que possamos identificar e assimilar todos os conteúdos reprimidos em nós. É com a integração desses aspectos reprimidos no inconsciente, mesmo os mais difíceis, que podemos conquistar o real amadurecimento de nossa personalidade, para fazermos frente aos desafios concretos que se prenunciam.
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