A existência de um Evangelho cuja autoria é atribuída a Maria Madalena, contendo ensinamentos que não teriam sido transmitidos aos demais apóstolos, foi descoberto apenas no século dezenove de nossa era. Não há nenhuma referência a esse texto nos tratados dos primeiros patriarcas da Igreja, como Iraneus, Clemente de Alexandria e Eusébio, mesmo quando eles tratam de doutrinas heréticas e de textos proibidos.
Hoje conhecemos esse antigo “Evangelho de Maria” graças a três manuscritos. O primeiro, mais completo e em copta, foi descoberto em 1896, no Cairo. Sua origem é envolta em mistérios e infelizes acidentes que atrasaram sua primeira publicação, incluindo a inundação da gráfica e a morte do egiptólogo responsável pela edição. Os outros dois manuscritos, apenas fragmentos em grego, foram encontrados somente no século vinte.
As poucas páginas hoje conhecidas desse evangelho apócrifo são impressionantes pelo seu conteúdo, que subverte as crenças tradicionais sobre a história de Jesus. Os fragmentos começam com lições de Jesus em resposta a questionamentos de seus discípulos a respeito da natureza da matéria. Mas o mais surpreendente dessa versão do evangelho é que Maria Madalena não é retratada com a pecadora dos evangelhos oficiais, e sim como a discípula mais próxima de Jesus, mais amada por ele que todas as outras mulheres, e que recebeu lições ignoradas pelos demais apóstolos. Segundo essa versão, Maria teria recebido de Jesus ensinamentos sobre a jornada do espírito (psique) após a morte que não eram conhecidos pelos outros discípulos.
Esses últimos só tomam conhecimento de tais lições quando Maria, cheia de piedade ao vê-los inconformados com a partida de Jesus, decide revelar-lhes o que aprendeu com Jesus em privado. A revelação, infelizmente, desperta a fúria de Pedro, o “pai da Igreja”, incrédulo da condição privilegiada de Maria.
Vamos ao manuscrito.
“(…) O que é a matéria? Ela durará para sempre?
E o Salvador respondeu: “Todas as formas, todos os elementos da natureza e todas as criaturas existem apenas em relação à conexão que têm umas com as outras, e retornarão a dissolver-se em sua raiz, pois a natureza da matéria é dissolver-se em sua própria raiz. Aquele que tem ouvidos para ouvir, que ouça.
Pedro disse a ele: “Já que você explicou tudo a nós, diga-nos também o que é pecado no mundo”.
E o Salvador respondeu: “Não há pecado, são vocês que inventam o pecado quando se comportam de forma a trair a sua própria natureza, que é o que se tem por pecado. Por causa disso é que Deus veio a vocês, para conduzir a essência de cada forma à sua raiz”.
Então prosseguiu e disse: “É por isso que vocês adoecem e morrem, porque amam aquilo que ilude a vocês. Quem tiver entendimento, que entenda. A matéria dá origem ao apego que não tem imagem e que vem de algo contrário à natureza. Então disso nasce uma perturbação em todo o seu corpo. Por isso é que ensino a vocês, sejam ao menos fiéis na presença das diferentes manifestações da natureza. Aquele que tem ouvidos, que ouça.”
Após dizer essas coisas, o abençoado dirigiu-se a todos dizendo: “Que a paz esteja convosco, a minha paz está com vocês! Tenham cuidado para que ninguém vos engane dizendo “Ele está aqui” ou “Ele está lá”, pois o Filho do Homem está dentro de vocês. Procure-o dentro de si, pois quem procurar o encontrará. Então agora partam e anunciem essa verdade sobre o reino dos céus. Não estabeleçam nenhuma regra além daquela que dei a vocês, nem criem normas como se fossem legisladores, pois serão dominados por elas.
E quando ele terminou de dizer essas coisas, partiu.
Mas eles ficaram inconformados, e lamentaram dizendo: “Como poderemos ir aos infiéis divulgar a verdade sobre o Reino de Deus? Se eles não o pouparam, como pouparão a nós?”.
Então Maria levantou-se, saudou a todos e disse a seus irmãos: “Não chorem, não sofram e nem duvidem, pois a luz dele estará inteira com vocês e protegerá a vocês. Em vez disso, vamos todos louvar sua grandeza, pois ele preparou-nos e fez-nos humanos”.
Quando Maria disse essas coisas, ela levou consolo ao coração deles, e começaram a discutir as palavras do Salvador.
E Pedro disse a Maria: “Irmã, sabemos que o Salvador a amava mais do que as outras mulheres. Diga-nos então o que você se lembra do que lhe foi ensinado e que não sabemos nem ouvimos”.
E ela começou a falar estas palavras: “Eu vi o Senhor em uma visão e disse a ele, “Senhor, eu vos vi em uma visão”, e ele respondeu dizendo “Abençoada sois vós, que não hesitaste ante minha visão, pois onde está a atenção (nous), aí está o tesouro”. E eu falei a ele: “Senhor, aquele que vê a visão o faz através do espírito (psique) ou da alma (pneuma)?” E o Salvador respondeu dizendo: “Ele não vê através do espírito nem da alma, mas pela atenção (nous) que está entre os dois (…).”
(…) <trecho desconhecido entre fragmentos>
E o Apego disse: “Eu não vi você descendo, mas agora vejo você subindo. Porque você mente, já que pertence a mim?” E o espírito (psique) respondeu: “Eu conheci você, mas você não me conheceu. Eu fui só uma vestimenta, e você não me entendeu”. E, ao dizer isso, o espírito prosseguiu jubilante.
E então veio o terceiro poder, que é chamado “Ignorância”. E ele inquiriu o espírito perguntando: “Onde está indo? Na maldade você está preso. Então não julgue”. E o espírito disse: “Porque me julgas, se eu não julguei? Eu estava preso, mas já não sou mais prisioneiro. Não fui reconhecido, embora eu tenha reconhecido que o Todo foi dissolvido em formas materiais e divinas”.
E quando o espírito superou o terceiro poder, ele ascendeu e viu o quarto poder, que tinha sete formas: a primeira forma é a escuridão, a segunda é o desejo, a terceira é a ignorância, a quarta é a inveja da morte, a quinta é o reino da carne, a sexta é a sabedoria tola da matéria e a sétima é a fúria do conhecimento. Esses são os sete poderes.
E eles perguntaram ao espírito: “De onde você veio, matador de homens, aonde está indo, conquistador do espaço?” E o espírito respondeu: “O que me prendia morreu, e o que me cercava foi superado. Meu apego acabou, e minha ignorância morreu. Em um mundo (aeon) fui libertado de um mundo (aeon), e graças a um modelo de um padrão celestial libertei-me do grilhão do esquecimento, que dura só um tempo. A partir de agora, eu me unirei ao restante das eras do tempo dos aeons, em silêncio.”
Após dizer essas coisas, Maria ficou em silêncio, pois foi até esse ponto que o Salvador falou com ela.
E André falou: “Falem o que quiserem sobre o que ela disse, eu pessoalmente não acredito que o Salvador tenha dito essas coisas, pois esses ensinamentos são ideias estranhas”.
Pedro respondeu e falou sobre as mesmas coisas: “Ele realmente falou privadamente a uma mulher coisas que não ensinou abertamente a nós? Vamos regredir e escutar a ela? Ele teria preferido ela a nós?”.
Então Maria chorou e disse a Pedro: “Irmão Pedro, o que pensais? Pensais que inventei todas essas coisas? Que estou mentindo sobre o Salvador?”.
Levi respondeu e disse a Pedro: “Pedro, você sempre foi encolerizado, e agora vejo você discutindo com uma mulher como se fosse um de nossos inimigos. Mas se o Senhor dignificou uma pessoa, quem é você para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem, por isso ele a amou mais do que a nós. Pelo contrário, vamos ser humildes e representar o ser humano perfeito, e compartilhar como ele nos ensinou a fazer, e assim divulgar a verdade, não estabelecer nenhuma outra regra nem lei, como ele nos instruiu”.
E foi quando partiram e começaram a pregar o evangelho.”
Trecho de Teoria Geral do Espírito
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