Estamos em uma época de conflitos no oriente médio que orbitam as decisões tomadas pelo governo de Israel. E extremistas de todos os lados parecem tramar a eclosão a todo custo da Terceira Guerra Mundial.
É como se buscassem o fim do mundo, um apocalipse nuclear. É assim que eu sinto, e acredito que não estou sozinho.
Acho que vale lembrar que, assim como nem todos os brasileiros eram bolsonaristas durante o governo de Jair Bolsonaro, nem todos os judeus e israelenses apoiam Netanyahu. Em qualquer desses casos, sejamos brasileiros, árabes ou judeus (como eu), aqueles que preferem o caminho da paz devem combater a tirania, não importa a roupagem religiosa ou política que ela usa. Pois a tirania sempre utiliza a religião e a ideologia para manter-se no poder e violar os direitos humanos das minorias e opositores.
O FIM DO MUNDO
Mas esses momentos de grande crise no oriente médio fazem meu lado mediúnico sentir calafrios. É que a associação entre a cultura hebraica e ideias de um Fim do Mundo é antiga. E o fato de que o ocidente acolheu (no cristianismo, e principalmente nas vertentes pentecostais), as narrativas judaicas sobre um Juízo Final mostra que esses mitos expressam uma angústia e expectativa da natureza humana, e não só uma característica da cultura hebraica.
Por isso, acredito que podemos aprender algo sobre o nosso mundo atual se conhecermos um pouco de como as comunidades judaicas, durante sua longa história, alimentaram o mito do “Fim do Mundo”. O que segue é um apanhado das ideias de alguns dos principais autores sobre o tema, que indico no fim do texto.
O FIM DO MUNDO E AS TRIBOS PERDIDAS
Vamos começar com os primeiros passos da era cristã. Em algum momento do século I d.C., começou a circular um tratado religioso de autoria presumivelmente judaica e atribuído a Enoque, o patriarca antediluviano que “andou ao lado de Deus”. Este texto, categorizado mais tarde como o Segundo Livro de Enoque, contém três parábolas que teriam sido transmitidas por Noé.
Nessas parábolas, imagens e temas comuns às religiões do Oriente Próximo são encontradas. Tratam de mistérios teológicos e científicos revelados por anjos, como a divisão do céu, a sala do trono de Deus, as causas do mal e forças naturais. As parábolas também trazem profecias sobre o Juízo Final, no qual os ímpios serão destruídos, e os eleitos, que sofreram por sua fé, viverão em paz sob o governo do Eleito.
Algumas gerações depois, em algum período entre o século quinto e sétimo depois de cristo, começou a circular nas comunidades judaicas o Sefer Zerubbabel (“Livro de Zorobabel”). Com influências do cânone hebraico, principalmente do Talmude (a coletânea dos livros sagrados judaicos, como a Bíblia), a obra falava sobre expectativas messiânicas e o papel dos anjos no Juízo Final. O próprio texto afirma ter sido escrito mil anos antes, ou seja, no período do Exílio Babilônico (587–538 a.C.), antes da construção do Segundo Templo pelo lendário Zorobabel. No relato, Zorobabel é levado a Nínive, onde encontra o anjo Miguel e um homem, que se revela como sendo o Menahem ben ‘Amiel, isto é, o Messias a ser enviado por Deus. Miguel explica herdeiros da linhagem de Davi foram escondidos por Deus até o momento da restauração de Israel.
Nas tradições e lendas hebraicas, as Tribos Perdidas de Israel e a linhagem de Davi estão conectadas por meio da esperança messiânica e das profecias de restauração de Israel. Essas duas ideias se entrelaçam nas narrativas apocalípticas, que envolvem a reunião das tribos perdidas. As Dez Tribos Perdidas referem-se às tribos do Reino do Norte de Israel que, após a invasão assíria no século VIII a.C., desapareceram da história, sendo levadas ao exílio. Elas incluem tribos como Efraim, Manassés, Issacar e Zebulom. A partir desse desaparecimento, surgiram inúmeras lendas e tradições sobre o paradeiro dessas tribos, com a crença de que elas voltariam no final dos tempos para restaurar o reino de Israel.
No século nove, um homem que se autodenominava Eldad ha-Dani apareceu em Kairouan, uma próspera comunidade judaica que estava situada na atual Tunísia. Alegando ser membro de uma das tribos perdidas de Israel, Eldad contou uma história sobre como os judeus dessas tribos viviam em um “paraíso distante”, situado além de um “rio mágico”. Ele descreveu cada tribo com características distintas, mas todas seriam devotas a Javé, imensamente prósperas e convivendo em uma grande utopia conjunta. Haverá algo de real atrás dessas “lendas” sobre um “outro lugar” misterioso?
MUITOS MESSIAS E ANTICRISTOS
Cada um dos relatos mencionados provavelmente inspirou um sentimento apocalíptico entre aqueles que os receberam com reverência, mas há diferenças notáveis em estilo e conteúdo entre essas narrativas. Os judeus vivendo sob o domínio romano, cristão e islâmico tinham esperanças e medos únicos, resultantes das relações sociopolíticas que estabeleceram com gentios e correligionários, refletidas em seus escritos.
Por outro lado, o judaísmo compartilhava elementos com religiões vizinhas, como a ideia de “múltiplos messias” e de múltiplos “anticristos”. Esses aspectos aparecem no Sefer Zerubbabel, que parece adaptar ideias messiânicas de do chamado Primeiro Livro de Enoque, separando características de eternidade ou temporalidade em dois indivíduos distintos, além de enfatizar a figura do Anticristo.
Essa noção de múltiplos messias, também presente nos manuscritos de Qumran (c. século II a.C. – 68 d.C.) e na literatura rabínica posterior, evoluiu ao longo do tempo e não era exclusivamente judaica. Uma forma inicial encontrada em Qumran sugere uma doutrina de messianismo duplo, com um líder sacerdotal e outro político. Por outro lado, a forma posterior, vista no Sefer Zerubbabel, envolvendo um líder militar/político e uma figura divina/eterna, apresenta semelhanças com o messianismo islâmico da Alta Idade Média.
De fato, os adeptos das crenças messiânicas que acreditavam que o fim estava próximo eram abertos em sua visão de que a Torá e a Halaká (“lei judaica”) eram manifestações inadequadas da verdadeira lei, que, segundo eles, seria ensinada por entes “messiânicos” no mundo vindouro. Para muitos desses crentes, a verdadeira “Lei” havia sido corrompida no momento da desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden, e sobrecarregada com regras de conduta desnecessárias e insignificantes para viver-se em um mundo corrompido.
Em contraste, os messianistas da cultura judaica acreditavam que, no novo mundo, seriam restaurados à plena unidade com o divino e estariam acima de regulamentações mundanas. Eles também acreditavam, segundo Scholem, que esse novo mundo poderia ser alcançado através de uma ascensão mística, um retorno individual ao divino, em vez do fervor messiânico das massas.
OS JUDEUS VERMELHOS
Acho interessante que os cristãos, tendo acolhido muitas tradições judaicas através dos livros do Velho Testamento, também adotaram suas ideias sobre um “Juízo Final”, mas para alimentar o antissemitismo e colocar a culpa no povo judeu. Historiadores como Trachtenberg e Emmerson explicaram como as visões cristãs sobre o Messias, o Anticristo e a escatologia apocalíptica contribuíram para o desenvolvimento do antissemitismo durante a Idade Média.
O estudo de Gow de 1995, The Red Jews: Antisemitism in an Apocalyptic Age, 1200–1600, representa uma síntese dos focos históricos de Trachtenberg e Emmerson. Pelo estudo de manuscritos, manifestações culturais e obras de arte da Europa na Idade Média, Gow mostrou que as crenças cristãs sobre o Apocalipse e o antissemitismo medieval precisam ser estudados em conjunto. Chamou a sua atenção, em particular, uma nomenclatura que autores cristãos germânicos usavam para se referir aos membros daquelas Tribos Perdidas: os “Judeus Vermelhos”.
O vermelho, segundo Gow, representava tudo o que havia de negativo para o cristão medieval, pois era a representação cromática germânica da duplicidade e do mal em obras literárias e artísticas da. Com a chegada da Peste Negra, as Tribos Perdidas/Judeus Vermelhos assumiram proporções ainda mais apocalípticas, sendo vistos como portadores da peste e envenenadores de poços, associadas à punição de Deus sobre a humanidade antes do julgamento final.
Se você leu “judeus vermelhos” e isso deu um calafrio em sua espinha por lembrar de associações atuais, você não está só. Observamos hoje no Brasil comunidades da vertente neopentecostalista apoiando os atos do governo israelense, mesmo com toda a dor e morticínio que estão provocando em Gaza e no Líbano.
São os mesmos que chamam de “comunistas” todos que possam divergir, mesmo que modestamente, de sua visão monolítica e reacionária de mundo, e que tem aversão à cor vermelha. E temos políticos no cenário internacional como Donald Trump, que durante uma campanha nas eleições de 2024, sugeriu que os judeus que votassem em sua adversária, Kamala Harris, seriam “traidores”.
FONTES:
Latteri, Natalie. Jewish apocalypticism: An historiography. 2018.
Gow, Andrew Colin. The Red Jews: Antisemitism in an Apocalyptic Age, 1200-1600. 2021.
Scholem, Gershom. Major Trends in Jewish Mysticism. 1961.